segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Paulo, o Falso Apóstolo

Sei que não podes suportar os maus, e que puseste à prova os que se dizem apóstolos e não o são, e os achaste mentirosos. - Apocalipse 2, 2

Os Apóstolos são os discípulos mais famosos de Jesus. Há uma certa controvérsia à volta dos seus nomes, mas aceita-se geralmente que eram Pedro, João, Tiago (Maior), Tomé, Simão, André, Filipe, Tiago (Menor), Mateus, Bartolomeu, Judas Tadeu e Judas Iscariote. Isto de serem doze é bastante significativo. Doze tribos de Israel, um Apóstolo para cada uma. O próprio Jesus falava de doze tronos no Céu, um para cada Apóstolo que ele escolheu.

Quando Jesus morreu e Judas se suicidou, os Apóstolos viram-se numa situação delicada: sem Mestre e sem um dos Doze. Percebiam que o número doze era importante, por isso trataram de escolher um substituto para Judas, impondo um critério de selecção: o escolhido devia ter seguido Jesus desde o dia do seu baptismo até à sua morte (Actos 1, 21-22). Nomearam então dois homens: José, chamado Barsabás, o Justo e Matias. A decisão final foi deixada ao Espírito Santo: tiraram à sorte e a sorte coube a Matias. Matias é portanto, décimo-segundo Apóstolo que veio substituir Judas Iscariote.

E que é feito de Paulo, "o maior de todos os Apóstolos"? Pois é. A História dos Apóstolos de Jesus não tem espaço para ele. Se deixarmos de lado as presuposições e analisarmos os factos, torna-se quase impossível entender como é que ainda hoje se junta Apóstolo e Paulo. Ou Santo e Paulo.

Apesar de não ter sido nomeado por Jesus, nem cumprir os requisitos posteriormente impostos por Pedro, Paulo apresentava-se sempre como sendo um Apóstolo. É pertinente recordar aqui algo que Jesus disse: "Se eu testifico de mim mesmo, o meu testemunho não é verdadeiro." (João 5, 31) E na verdade, para além de Paulo há apenas uma outra pessoa que lhe atribui o título de Apóstolo: Lucas, autor de Actos dos Apóstolos. Mas Lucas era um discípulo de Paulo, logo não é surpresa que trate o seu professor pelo título que este prefere.

Paulo era um homem inteligente. Sabia que os argumentos de autoridade contam, e por isso acompanha sempre a sua apresentação pela autoridade de Deus (algo do estilo "apóstolo não pelos homens mas por Jesus Cristo"). Se "Deus" lhe deu uma missão através de uma visão (uma visão bastante questionável, por sinal, já que nem o próprio Paulo a relata de maneira coerente) quem o pode desafiar? Mas ao contrário da visão, que só Paulo teve, as palavras de Jesus foram ouvidas por muita gente. Todos os que o ouviam sabiam quem eram os Doze Apóstolos.

Paulo chega mesmo a utilizar Escrituras, aplicando antigas profecias a ele próprio, nomeadamente Isaías 49, 6: "também te dei para luz dos gentios, para seres a minha salvação até à extremidade da terra." (Actos 13, 47-49) O problema com esta profecia é que se aplicava apenas a Isaías. Não a Paulo.

Portanto, até agora Paulo tem uma questionável missão "divina" e uma falsa profecia. Que mais? Ah, sim. O grande ego e a auto-adoração. Paulo achava-se, de facto, superior aos outros Apóstolos (os verdadeiros). Chega mesmo a dizer que "trabalhou muito mais do que eles" (1 Coríntios 15, 10), e fala de Tiago, Pedro e João dizendo que "pareciam ser as colunas", mas que a ele nada lhe acrescentam (Gálatas 2, 6-9). Não há em todo o Novo Testamento nenhum autor que use a palavra "eu" com tanta frequência como Paulo.

Mas a derradeira prova da falsidade deste "Apóstolo" vem de João, ou melhor de Jesus através de João. João escreveu o Apocalipse. A data exacta não se sabe, mas é bastante provável que tenha sido escrito durante a "missão" de Paulo. Se Paulo era de facto um grande Apóstolo, não há nenhuma palavra sobre a sua grandeza nesta Revelação. Há contudo, uma referência ao seu trabalho.

Logo no primeiro capítulo a aparição de Jesus diz a João que escreva o que vê num livro e o envie às sete igrejas na Ásia. Prossegue então com uma mensagem para cada uma das Igrejas. A mais relevante para o caso é a primeira, para a de Éfeso. Diz o seguinte:

"Conheço as tuas obras, o teu trabalho, e a tua paciência, e que não podes sofrer os maus; e puseste à prova os que dizem ser apóstolos, e o não são, e tu os achaste mentirosos. E sofreste, e tens paciência; e trabalhaste pelo meu nome, e não te cansaste. [...] Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas." (Apocalipse 2, 2-7)

Tem-se conhecimento apenas de uma pessoa que se dirigiu à Igreja de Éfeso dizendo ser Apóstolo:

"Paulo, apóstolo de Jesus Cristo, pela vontade de Deus, aos santos que estão em Éfeso, e fiéis em Cristo Jesus" (Efésios 1, 1)

Como se isto não bastasse, existe também este pequeno desabafo de Paulo ao seu amigo Timóteo:

"Bem sabes isto, que os que estão na Asia todos se apartaram de mim." (2 Timóteo 1, 15)

E onde é Éfeso? Na Ásia.

Também Lucas fala sobre a dificuldade de aceitação que Paulo encontrou em Éfeso. No capítulo 19 do livro dos Actos dos Apóstolos relata o sucedido. Paulo persuadiu alguns dos homens (doze, de acordo com Lucas) a deixarem o baptismo de João (convém lembrar que Jesus procurou o baptismo de João) e deu-lhes um outro baptismo "em nome de Jesus Cristo". Ensinou ali durante alguns meses, mas a maioria das pessoas rejeitaram os seus ensinamentos e falavam contra eles em público. (Actos 19, 1-9)

Então o que temos aqui? Paulo disse, "sou um Apóstolo, este é o Evangelho". A Igreja de Éfeso disse-lhe, "vai-te embora". E João, Apóstolo de Jesus, disse-lhes, "muito bem! é assim mesmo!"

Este assunto dá pano para mangas. Continuo no próximo post.

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Jesus, o Libertador no Templo

And the birds gathered around him, and welcomed him with their song, and other living creatures came unto his feet, and he fed them, and they ate out of his hands. - Lection XXXIV, 3, Gospel of the Perfect Life

Uns dias antes da Páscoa dos judeus, Jesus e os seus seguidores chegaram a Jerusalém e dirigiram-se ao Templo. Quando chegaram, Jesus nem podia acreditar no que via. O Templo estava cheio de vendedores de gado, de ovelhas, de pombas, animais que os peregrinos compravam para oferecer em sacrifício para a purificação da alma. Havia ali também uns cambistas, que trocavam o dinheiro dos peregrinos para que pudessem comprar. Jesus encheu-se de indignação: fez sair dali todos os animais, derrubou as mesas, e disse:

- Saiam daqui! Esta é uma casa de oração, mas transformaram-na num covil de assaltantes. Não derramem sangue inocente neste lugar!

Mas... esta história não se parece com a versão que normalmente se conta... Pois é. Tal como em muitas outras ocasiões, também aqui foi distorcida a mensagem de Jesus. O ponto principal da revolta, o sacrifício animal, foi obscurecido, e um outro aspecto, bastante irrelevante para o caso, ganhou proporções desmedidas. Jesus não se estava a revoltar contra o "comercialismo" ter tomado conta do Templo.

Vejamos então. De acordo com todos os evangelhos, Jesus dá primeiro atenção aos animais, não aos cambistas. E a palavra que usa, aliás, que cita, é bastante significativa. A diferença entre "ladrão" e "assaltante" no tempo de Jesus é bastante clara: um ladrão é alguém que rouba uma maçã no mercado, um assaltante é aquele que diz "a bolsa ou a vida" e fala a sério. Simplificando: alguém que não se importa de matar para com isso lucrar. A ideia de assaltante está ligada a violência. Como disse, as palavras de Jesus são uma citação do profeta Jeremias:

Este é o Templo do SENHOR. Se endireitares os vossos caminhos e emendares as vossas obras, se verdadeiramente praticardes a justiça uns com os outros, se não oprimirdes o estrangeiro, o órfão e a viúva, nem derramardes neste lugar o sangue inocente, se não seguirdes para vossa desgraça, deuses estrangeiros, então Eu permanecerei convosco neste lugar. Mas voltais a cometer todas essas abominações. Porventura, este templo, onde o meu nome é invocado, é a vossos olhos um covil de ladrões?
(Jr 7, 4-9, abreviado)

Estas palavras foram proferidas por Jeremias à entrada do Templo. Jesus imita este comportamento destemido, e cita o seu modelo. Mas como vemos, Jeremias não se insurge contra os cambistas. Na verdade, nem sequer lhes faz menção, o que não é de espantar, já que não existiam no seu tempo. Mas não há no discurso de Jeremias nenhuma referência ao comercio à volta da religião, sequer, mesmo apesar de usar o termo ladrões (assaltantes). Todas as suas acusações são contra os princípios morais. E apesar de o roubo, supostamente praticado pelos cobradores, ser errado, o pecado maior é o derrame de sangue inocente.

Aliás, é ingénuo pensar que Jesus estava apenas a acusar os cambistas de roubarem os peregrinos. Porque é que "o povo, ao ouví-lo, ficava suspenso dos seus lábios" (Lc 19, 48)? Se Jesus estava apenas a falar contra o roubo, não há nisso nada de extraordinário. Porque é que o povo ficava surpreendido? Mas se a sua crítica era ao sacrifício animal... Era no mínimo um ensinamento invulgar, já que entre Jeremias e Jesus não há registos de ninguém que se tenha oposto tão veementemente ao sacrifício. Os sacerdotes e os doutores da Lei, tentando preservar a sua autoridade, começaram então a conspirar para matar Jesus. Será que o fariam se ele apenas refutasse o comércio no Templo? O desafio a um dos pilares do judaísmo da altura é uma hipótese bem mais provável.

Há outras histórias, noutros evangelhos, que mostram este lado de Jesus, como a vez em que libertou uns pássaros, ou quando persuadiu um homem a não caçar. Tudo isto corrobora a teoria que diz que Jesus fazia parte de um grupo judeu que rejeitava a Lei corrompida e seguia a verdadeira Lei de Deus dada a Moisés, os Essénios. Este grupo não se dirigia ao Templo por desaprovarem dos sacrifícios de sangue que ali tinham lugar. Eram também vegetarianos. Mas disto falarei noutro dia.

Termino com uma frase que disse há uns tempos a alguém: Yeah, Jesus was pretty much an animal liberationist. Fossem todos como ele! Porque o bom senso, a compaixão e os princípios não chegam, é preciso agir também.

Se vos apetecer, vejam isto. Apesar de não ser historicamente exacto, não deixa de ser fantástico.